quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Lembro, mas não aconteceu

Você jura que deixou o talão de cheques em uma determinada gaveta. É capaz de lembrar os detalhes: usou uma folha para pagar o encanador e deixou ao lado do cartão de visita da amiga decoradora. Mas você revira a gaveta, a estante, e nada. Dias depois, depois inclusive de você ter pedido um novo talão ao banco, os cheques aparecem dentro de uma bolsa há muito não usada – justo aquela que você levou para a festa de aniversário da tal amiga.

E se aquela lembrança que lhe parece inquestionável fosse, na verdade, fruto da imaginação? Meio assustador, não? O fenômeno das falsas memórias (FM) é muito mais corriqueiro do que se pode imaginar e atinge a todos, em maior ou menor proporção. Na maioria dos casos, não está relacionada a distúrbios neuropsíquicos.

O estudo das falsas memórias é objeto de investigação mundo afora, principalmente motivado pela psicologia forense: nesses casos, qualquer distorção de lembrança pode levar à condenação de inocentes. Mas não é de hoje que ela ocupa os cientistas. No início do século passado, Freud chegou à conclusão de que nem tudo que é lembrado realmente aconteceu. Na observação dos relatos dos pacientes, percebeu que a memória de eventos traumáticos narrados durante as sessões de análise podiam ser, na verdade, frutos de fantasias infantis ou de desejos primitivos. Tal conclusão se tornou um dos pilares da psicanálise. O tema deu origem ao livro Falsas memórias (Ed. Artmed), um compilado de textos de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, organizados pela psicóloga Lilian M. Stein.

Muitas vezes, a FM é provocada por uma fragmentação no que foi vivido: a realidade perde espaço para a interpretação que temos do tema. Surge espontaneamente, a partir de associações próprias do indivíduo. Em geral, funciona como no exercício de completar as lacunas: para a compreensão de um determinado fato, as “brechas” que faltam são completadas inconscientemente com informações não-verdadeiras. Em algumas situações, porém, esses meros “detalhes” são capazes de alterar o conteúdo com grande intensidade, sem que nos demos conta disso. No processamento da memória, muitas vezes a psique prioriza a essência (sentido) do que foi vivido e não a história literal (fatos). Também é comum a troca de fontes de informação, como no exemplo citado na abertura: o talão de cheques foi tão associado à amiga decoradora a ponto de “criarmos” a FM de ter visto o cartão de visitas dela na mesma gaveta – ignoramos que o elo entre eles era a bolsa.

As FMs também podem ser sugeridas ou “plantadas” na psique por agentes externos. Assim como no dito popular, uma mentira bem contada pode se tornar uma verdade – acreditamos a ponto de ter a certeza de que aquilo realmente aconteceu. “Detalhes” narrados por outros são acrescentados naturalmente para enriquecer a história vivida. Ou, em alguns casos, nos apoderamos daquilo que sequer foi vivido. Não é simplesmente uma mentira: temos a nítida certeza de que aquela é a realidade.

Apesar de não se debruçar sobre a questão das FM, Jung fala da memória como um dos componentes indispensáveis ao funcionamento psíquico. Nem sempre é voluntária e controlável como desejamos: “...normalmente ela [a memória] é cheia de truques, assemelha-se a um cavalo ruim que não se deixa guiar”. Para ele, esse caráter arredio está relacionado à carga afetiva que cada
vivência provoca. Assim ela pode se tornar viva e constantemente atualizada na consciência a partir das lembranças. Pode também migrar para o inconsciente como conteúdos descartados, por serem banais, ou reprimidos, por serem conflituosos demais para serem lembrados.

Obviamente, é preciso observar a freqüência e a intensidade das FMs no cotidiano. Apesar de serem comuns a todos, o nível de comprometimento que elas oferecem às atividades corriqueiras e o mal estar que provocam merecem
atenção: elas podem surgir como indícios de algum distúrbio psíquicos ou neurológicos.

E você, tem certeza de tudo que se lembra?
 
João Rafael Torres é jornalista, tarólogo e analista junguiano. consulta@tarotanalitico.com.br
 

* O texto foi publicado originalmente no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

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